Durante muito tempo vigorou o regime de relações conjugais impedidas de se quebrarem por imposição da lei.
Considerações políticas e econômicas à parte, vale lembrar que o casamento patriarcal tinha como um de seus principais objetivos assegurar a manutenção e ampliação do patrimônio e gerar filhos/as que herdassem o mesmo - lembrando que, historicamente, nem sempre a lei permitiu que mulheres se tornassem herdeiras do que quer que fosse.
Era - ou ainda é - um tempo em que cada um valia pelo que tinha, portanto, quanto mais o indivíduo tivesse em bens, mais alto o seu reconhecimento social.
O patrimônio não podia ser dividido por conta de "frivolidades amorosas". Gostando ou não, a relação conjugal tinha que continuar, nem que fosse de fachada ou pela força da lei.
Muitas das soluções para resolver o dilema amor-patrimônio passavam pela triangulação com amantes.
A situação ficava dividida mais ou menos assim: para a esposa, os herdeiros e a honra, mas, sem o prazer; e para as amantes, o sexo e o prazer, mas, sem a honra e com a desonra das relações ilegítimas.
Era também o tempo da cisão entre amor e sexo, que nem sempre estavam juntos nos relacionamentos de outrora.
Dizemos que no patriarcado, as mulheres tinham que escolher entre a honra das mães de família ou o prazer das prostitutas.
E que os homens tinham que escolher entre a virilidade, a dureza dos machões ou a afetividade e a fidelidade dos chamados "camisolões " - homens mais voltados para lar, para a esposa e para os filhos/as e que eram ridicularizados pelos outros homens e pela sociedade.
Não se podia ter ambos: honra e prazer, virilidade e afetividade/fidelidade. Era uma época de indivíduos divididos, desterritorializados, exilados de sua inteireza humana.
Ok. Fez parte do processo histórico.
O tempo passou e as experiências humanas mostraram que ter coisas, ter bens não substitui a necessária e desejável busca do ser humano por afeto, intimidade, satisfação a dois.
Na década de 70, veio a libertadora lei do divórcio abrindo a possibilidade de substituir o "inquebrantável" casamento por patrimônio pelo casamento por amor. Desde então, quem concluir que "não ama mais" passou a poder assumir uma nova escolha de parceria conjugal.
O que começou timidamente com um ou outro caso de separação foi gradativamente ganhando terreno e virou epidemia social.
Esta "epidemia de divórcios" é possivelmente consequência de vários fatores.
Entre eles aponto alguns:
- O despreparo e até a infantilidade de algumas pessoas para fazerem uso das prerrogativas da lei, para fazerem uso da liberdade a que todo ser humano deve ter direito.
- A existência de traumas e angústias vindos de relações parentais rompidas ou tumultuadas nas gerações anteriores.
- Compromissos e repetições insconscientes que afastam o sujeito do caminho da felicidade.
- Muita gente perdida em função das mudanças de modelo de casal e família e sem saberem muito bem por onde ir nas relações amorosas atuais.
- O culto ao individualismo que assolou a mentalidade do mundo moderno .
- As idealizações hollywoodianas sobre o que sejam as "parcerias ideais" fazendo com que as parcerias reais pareçam insossas e desprezíveis. Ou seja, ao compararem seus romances com os de Hollywood, algumas pessoas concluem equivocadamente que, se seu relacionamento não parece um filme em 3D, é porque não é emocionante, não é amor. Este equívoco as leva a descartarem relações potencilmente boas, mas reais - ou seja, com dificuldades e possibilidades.
- O triste afastamento do ser humano daquilo que é simples e essencial.
- O medo profundo da "entrega" que a relação a dois pressupõe e para a qual o ser humano ainda está se estruturando.
E finalmente, a ocorrência de mecanismos "enantiodrômicos" através dos quais uma situação extrema chama o seu outro extremo.
A questão é complexa.
Neste momento, gostaria de abordar dois desses aspectos.
O primeiro:
Me parece que algumas pessoas, movidas por um tipo insano de mídia, se comportam com o casamento - sem se darem conta disto - como se fossem crianças pequenas experimentando a caixa de lápis de cor: "ah! experimentei este e não gostei quero experimentar outro/a, e outro/a, e outro/a..." Fazem experimentação conjugal sem a noção exata das consequências, principalmente para os filhos/as, mas, para a própria pessoa também.
Sou claramente a favor de que haja o direito à separação conjugal. Mas, para casos em que ela seja "indicada". Esta indicação, claro, feita pelo próprio casal que tenha chegado a esta conclusão, depois da vasta constatação de que não querem mais trilhar juntos o caminho da felicidade.
O que não pode é usar o recurso da separação - que considero uma espécie de remédio tarja preta para patologias amorosas - como se fosse um remédio corriqueiro a que se tem acesso sem muitas restrições. É preciso considerar que entre ficar a todo custo numa relação ruim e se divorciar em 24h há todo um repertório de outras possíveis buscas, inclusive as terapias conjugais e familiares.
Mas... ficou rápido se separar. Pensar dói e ir ao juiz parece doer menos do que tomar consciência de até onde cada cônjuge participou/participa dos encaixes disfuncionais de seu casamento.
O divórcio passou a ser uma solução aparentemente fácil e ao alcance de todos. Este é segundo aspecto que gostaria de abordar.
Para isto, evoco o antigo conceito de "enantiodromia" - que pode ser entendido como o movimento de migrar de um extremo ao outro, ir de um polo ao outro. Passar de um comportamento radical à direita para um radical à esquerda. É uma espécie de mecanismo compensador em que tudo o que vai a um extremo atrai o seu extremo oposto.
Para dar um exemplo da enantiodromia agindo nas relações amorosas atuais, lembro-me de uma pesquisa em que, num cartório, observou-se que uma grande quantidade de esposas estavam pedindo rapidamente a separação conjugal. Os pesquisadores intrigados foram verificar o histórico destes pedidos de separação e encontraram alí mulheres cujas mães haviam "aguentado" por anos a fio casamentos insuportáveis. Sua mensagem para as suas filhas era: "não aguente nada, chute o balde ao primeiro dissabor".
Assim, possivelmente como parte da transição das relações conjugais patriarcais para as relações conjugais contemporâneas, a sociedade esteja indo do extremo conservadorismo antigo ao extremo desapego relacional moderno.
Se as mulheres estão fazendo o seu papel nisto há também a complementação masculina deste cenário.
O que vemos é que, depois de séculos de casamentos inquebrantáveis surgiram os casamentos quebradiços.
Talvez já seja hora de buscarmos o equilíbrio da balança!
© amar@gmail.com
Todos os Direitos Reservados*.
Lei nº 9.610/98 - Lei de Direitos Autorais
Considerações políticas e econômicas à parte, vale lembrar que o casamento patriarcal tinha como um de seus principais objetivos assegurar a manutenção e ampliação do patrimônio e gerar filhos/as que herdassem o mesmo - lembrando que, historicamente, nem sempre a lei permitiu que mulheres se tornassem herdeiras do que quer que fosse.
Era - ou ainda é - um tempo em que cada um valia pelo que tinha, portanto, quanto mais o indivíduo tivesse em bens, mais alto o seu reconhecimento social.
O patrimônio não podia ser dividido por conta de "frivolidades amorosas". Gostando ou não, a relação conjugal tinha que continuar, nem que fosse de fachada ou pela força da lei.
Muitas das soluções para resolver o dilema amor-patrimônio passavam pela triangulação com amantes.
A situação ficava dividida mais ou menos assim: para a esposa, os herdeiros e a honra, mas, sem o prazer; e para as amantes, o sexo e o prazer, mas, sem a honra e com a desonra das relações ilegítimas.
Era também o tempo da cisão entre amor e sexo, que nem sempre estavam juntos nos relacionamentos de outrora.
Dizemos que no patriarcado, as mulheres tinham que escolher entre a honra das mães de família ou o prazer das prostitutas.
E que os homens tinham que escolher entre a virilidade, a dureza dos machões ou a afetividade e a fidelidade dos chamados "camisolões " - homens mais voltados para lar, para a esposa e para os filhos/as e que eram ridicularizados pelos outros homens e pela sociedade.
Não se podia ter ambos: honra e prazer, virilidade e afetividade/fidelidade. Era uma época de indivíduos divididos, desterritorializados, exilados de sua inteireza humana.
Ok. Fez parte do processo histórico.
O tempo passou e as experiências humanas mostraram que ter coisas, ter bens não substitui a necessária e desejável busca do ser humano por afeto, intimidade, satisfação a dois.
Na década de 70, veio a libertadora lei do divórcio abrindo a possibilidade de substituir o "inquebrantável" casamento por patrimônio pelo casamento por amor. Desde então, quem concluir que "não ama mais" passou a poder assumir uma nova escolha de parceria conjugal.
O que começou timidamente com um ou outro caso de separação foi gradativamente ganhando terreno e virou epidemia social.
Esta "epidemia de divórcios" é possivelmente consequência de vários fatores.
Entre eles aponto alguns:
- O despreparo e até a infantilidade de algumas pessoas para fazerem uso das prerrogativas da lei, para fazerem uso da liberdade a que todo ser humano deve ter direito.
- A existência de traumas e angústias vindos de relações parentais rompidas ou tumultuadas nas gerações anteriores.
- Compromissos e repetições insconscientes que afastam o sujeito do caminho da felicidade.
- Muita gente perdida em função das mudanças de modelo de casal e família e sem saberem muito bem por onde ir nas relações amorosas atuais.
- O culto ao individualismo que assolou a mentalidade do mundo moderno .
- As idealizações hollywoodianas sobre o que sejam as "parcerias ideais" fazendo com que as parcerias reais pareçam insossas e desprezíveis. Ou seja, ao compararem seus romances com os de Hollywood, algumas pessoas concluem equivocadamente que, se seu relacionamento não parece um filme em 3D, é porque não é emocionante, não é amor. Este equívoco as leva a descartarem relações potencilmente boas, mas reais - ou seja, com dificuldades e possibilidades.
- O triste afastamento do ser humano daquilo que é simples e essencial.
- O medo profundo da "entrega" que a relação a dois pressupõe e para a qual o ser humano ainda está se estruturando.
E finalmente, a ocorrência de mecanismos "enantiodrômicos" através dos quais uma situação extrema chama o seu outro extremo.
A questão é complexa.
Neste momento, gostaria de abordar dois desses aspectos.
O primeiro:
Me parece que algumas pessoas, movidas por um tipo insano de mídia, se comportam com o casamento - sem se darem conta disto - como se fossem crianças pequenas experimentando a caixa de lápis de cor: "ah! experimentei este e não gostei quero experimentar outro/a, e outro/a, e outro/a..." Fazem experimentação conjugal sem a noção exata das consequências, principalmente para os filhos/as, mas, para a própria pessoa também.
Sou claramente a favor de que haja o direito à separação conjugal. Mas, para casos em que ela seja "indicada". Esta indicação, claro, feita pelo próprio casal que tenha chegado a esta conclusão, depois da vasta constatação de que não querem mais trilhar juntos o caminho da felicidade.
O que não pode é usar o recurso da separação - que considero uma espécie de remédio tarja preta para patologias amorosas - como se fosse um remédio corriqueiro a que se tem acesso sem muitas restrições. É preciso considerar que entre ficar a todo custo numa relação ruim e se divorciar em 24h há todo um repertório de outras possíveis buscas, inclusive as terapias conjugais e familiares.
Mas... ficou rápido se separar. Pensar dói e ir ao juiz parece doer menos do que tomar consciência de até onde cada cônjuge participou/participa dos encaixes disfuncionais de seu casamento.
O divórcio passou a ser uma solução aparentemente fácil e ao alcance de todos. Este é segundo aspecto que gostaria de abordar.
Para isto, evoco o antigo conceito de "enantiodromia" - que pode ser entendido como o movimento de migrar de um extremo ao outro, ir de um polo ao outro. Passar de um comportamento radical à direita para um radical à esquerda. É uma espécie de mecanismo compensador em que tudo o que vai a um extremo atrai o seu extremo oposto.
Para dar um exemplo da enantiodromia agindo nas relações amorosas atuais, lembro-me de uma pesquisa em que, num cartório, observou-se que uma grande quantidade de esposas estavam pedindo rapidamente a separação conjugal. Os pesquisadores intrigados foram verificar o histórico destes pedidos de separação e encontraram alí mulheres cujas mães haviam "aguentado" por anos a fio casamentos insuportáveis. Sua mensagem para as suas filhas era: "não aguente nada, chute o balde ao primeiro dissabor".
Assim, possivelmente como parte da transição das relações conjugais patriarcais para as relações conjugais contemporâneas, a sociedade esteja indo do extremo conservadorismo antigo ao extremo desapego relacional moderno.
Se as mulheres estão fazendo o seu papel nisto há também a complementação masculina deste cenário.
O que vemos é que, depois de séculos de casamentos inquebrantáveis surgiram os casamentos quebradiços.
Talvez já seja hora de buscarmos o equilíbrio da balança!
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Este texto pode ser reproduzido desde que se faça referência à autora e à fonte.
Modo de citação sugerido:
Ferreira, Valéria Giglio - Blog AMAR- EDUCAÇÃO CONJUGAL E FAMILIAR